8/05/2005

Momento de decisão

Bia estava ansiosa e confusa. Partir para um mundo desconhecido ou abandonar seus sonhos? Sua vida nunca foi fácil; nasceu pobre, morava na favela, passou fome. No entanto, a pobreza material nunca foi motivo para ela aceitar passivamente a pobreza de espírito e a ignorância. Aprendeu a ler aos cinco anos com a ajuda da mãe e do irmão que lhe emprestava gibis e ensinou-lhe a cantar cantigas infantis. Quando Bia entrou para a escola, todos se espantaram com sua inteligência. Aprendia tudo facilmente e aos 12 anos já dominava o computador.
O que mais impressionava as pessoas da comunidade era o seu gosto pelo samba. Dançava com o charme e a graça das grandes passistas; tornou-se uma celebridade na escola de samba do bairro. A afinidade de Bia com os valores e os costumes da comunidade era admirável. Por isso todos a amavam. Inteligente, linda e gentil. Sua genialidade na informática e no samba encantava os intelectuais do asfalto e o povo da favela.
Quando ela completou 15 anos, uma Ong internacional criou um núcleo de inclusão digital e profissional na comunidade e contratou a Bia para trabalhar como monitora de informática. O salário não era lá essas coisas, mas o dinheiro veio em boa hora e a felicidade de Bia não tinha preço. Agora, aos 18 anos, Bia havia se tornado referência em software livre e participava ativamente de movimentos de inclusão social e digital nas comunidades pobres da cidade. Entretanto, ela sonhava: “Um dia vou me formar. A minha vida vai melhorar!” Queria se formar em ciência da computação, ser professora e escrever livros. Porém, quando ela acordava, as dificuldades da vida e a falta de dinheiro golpeavam duramente suas esperanças. Contudo, pior do que a pobreza era a falta de perspectiva de uma vida melhor. Nessa época, ela viu muitos amigos serem seduzidos pelo crime e pelas drogas. “Coitados! Morreram tão jovens”. Ela nunca entendeu por que um país tão rico como o nosso oferece tão pouco aos jovens.
Agora ela estava ali, diante do espelho, procurando dentro de si a coragem para ir ao encontro dos seus sonhos. Ela nunca imaginou que ganharia uma bolsa de estudos da Ong para estudar na França. Bia não sabia se chorava de tristeza ou de alegria. Ela se sentia com um balão cheio de energia para voar, mas com fortes amarras presas ao chão. Ela teria que deixar a família, a comunidade e o seu mundo para enfrentar o desconhecido. Isso tudo a amedrontava. Porém, essa era a chance de sua vida. Não desistiria agora. Então, ela enxugou as lágrimas, vestiu-se, fechou a mala e pegou seus documentos. Sua mãe chorava; ela afagou-a carinhosamente e deu-lhe um beijo.
Ao sair do barraco, Bia viu os seus amigos e vizinhos sambando alegremente e cantando: “Ai, ai, ai, ai. Tá chegando a hora...”. Enquanto beijava e abraçava a todos um por um, dizia docemente: “Vou atrás de meus sonhos na França, mas voltarei para dividir com vocês tudo o que eu aprender lá fora”. Ela sabia que havia alguma razão para que aquilo tudo estivesse acontecendo com ela.
Neste momento, Dona Neuza, a diretora da Ong, desabafou: “É lamentável ver os nossos talentos irem embora do país enquanto assistimos a esses escândalos de corrupção. Imaginem o que todo esse dinheiro das malas, cuecas e mensalões poderiam fazer pela educação desse povo?”. Em seguida, Bia deu uma última olhada para a favela; levantou seus olhos para o céu, fez uma prece e partiu em busca de seus sonhos.

Onde foi publicado:

  • Jornal A Cidade de Ribeirão Preto/SP em 04/08/2005