8/11/2005

A segunda chance

Lia era uma mulher notável: loura, alta, bonita e inteligente. Não era rica, mas também nunca teve problemas com dinheiro. O pai, ao falecer, deixou-lhe uma boa herança e, além disso, ela tinha um ótimo salário pois era uma analista de sistemas muito competente e experiente que havia trabalhado em grandes empresas, inclusive fora do Brasil. Porém, Lia tinha um grave problema: ela era viciada em trabalho.
Desde o início de sua vida profissional, Lia sabia que, sendo mulher e trabalhando em uma área dominada pelos homens, teria que mostrar muita competência para ganhar respeito e credibilidade. Assim, lutava muito, buscava a superação da discriminação e a sua auto-afirmação no mundo machista da informática. Viajava muito, passava muitos dias longe de casa, convivia com estranhos, dormia mal. Era assediada mas sempre soube como colocar os abusados em seu devido lugar. Quando estava em casa, o celular não parava de tocar. Quantas vezes, o “stress” e o mau humor destruíram relacionamentos profissionais e pessoais? Lia havia perdido a conta. Otávio, seu marido, fez o possível para suportar aquela vida cheia de altos e baixos emocionais, porém, um dia não agüentou mais e foi embora.
Lia entrou em depressão. A choque da separação trouxe à tona toda a fragilidade oculta daquela mulher de ferro acostumada a tomar decisões, demitir pessoas sem piedade e comandar grandes projetos. Ela entrou em queda livre. Parecia que nunca ia parar de despencar das alturas de seu delírio. Ela não percebeu que suas escolhas pouco a pouco foram destruindo suas amizades, seu casamento, a ela mesma. “A ficha caiu” e Lia estava só.
Resolveu afastar-se do trabalho. Saiu de férias. As primeiras em anos de trabalho. Viajou para o litoral. Ela queria lavar sua alma nas águas do mar. Um dia, ao caminhar pela praia, reparou nas imagens que as ondas pintavam na areia e nas rochas. Lia então lembrou-se de sua juventude, de seus sonhos, das pinturas que fazia na escola de artes. Recordou-se que abandonou os pincéis e as telas quando se formou em ciência da computação. As luzes e o “glamour” do mundo “high tech” a enfeitiçaram.
Sentiu vontade de pintar novamente. Entregou-se à sua antiga paixão pela arte e pintou, e pintou, e pintou. Quanto mais pintava mais sentia o equilíbrio e a serenidade que o belo despertava em sua alma. O exercício da arte estava banindo a ansiedade e a angústia que embriagavam seu coração.
Ao retornar à empresa, teve certeza de que aquele mundo não lhe servia mais. Ela desejava dar outro sentido à sua vida. Estava decidida a dizer adeus ao frenético mundo dos bites e bytes, às viagens intermináveis, à solidão dos hotéis, aos seminários insossos e toda aquela falsa sensação de auto-suficiência e onipotência. “Quero voltar a viver!”
Uma semana após ter voltado das férias, Lia surpreendeu a todos pedindo demissão. “Como?” “Por que abandonar uma empresa de software que todo profissional almeja trabalhar?” “É uma louca varrida!” Os comentários se multiplicavam. Lia não ligava. Pela primeira vez ela estava fazendo algo que realmente queria fazer. Pouco lhe importava o que os outros pensassem a seu respeito. Estava de malas prontas para viver na praia e dedicar-se inteiramente à pintura. Seria feliz. Reencontraria o amor. Teria amigos novamente. Afinal, Lia não podia desperdiçar a sua segunda chance. Não era mais uma menina, era mulher.

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