3/14/2006

O construtor de pontes

Podemos comparar a arte de traduzir com a arte de caminhar sobre o fio de uma espada. Qualquer deslize pode ser fatal porque as palavras e os pensamentos são ingredientes preciosos, mas perigosos, que fazem parte de uma receita incapaz de agradar a todos os paladares: a comunicação.

A palavra tradução, que vem do termo latino traducere, significa verter, trasladar de uma língua para outra. Curiosamente, a palavra traição que vem do latim traditione e significa o ato ou efeito de trair, possui o mesmo radical (trad) e esse fato lança no ar uma questão perturbadora: “traduzir é trair?”.

Então, o que é preciso para ser um bom tradutor? Bem, creio que não existe uma receita infalível porque a tradução está longe de ser uma ciência exata. Talvez o primeiro passo seja aceitar que ninguém é perfeito e lembrar sempre que o único tradutor que não erra é aquele que não exerce seu ofício.

A propósito, lembro-me de um velho amigo que conheci nos tempos da faculdade. O pessoal o chamava de “Mané” por causa do sotaque aportuguesado que ele tinha. Filho de um português e de uma canadense, o “Mané” nasceu em Angola e se mudou para o Brasil aos 15 anos. Ele fala Inglês, português, francês, um dileto africano e aprendeu tupi-guarani durante o tempo que morou no Xingu. Quando eu o conheci ele estava com 35 anos e trabalhava com traduções há uns 10 anos. Ele viajou por toda a Europa, estudou no Canadá e vagabundeou pelos Estados Unidos viajando de carona. Um dia ele “desbundou” e voltou para o Brasil porque descobriu que gostava mesmo era de sol, praia, mulatas e cerveja bem gelada. Quando eu lhe contei que eu estou me preparando para ser tradutor, ele não falou nada. Alguns dias depois recebi o seguinte e-mail:

“Caro Lan, não é fácil ser um tradutor. Esteja preparado para estudar o resto de sua vida, mas não se torne um CDF reacionário. Busque o novo, use computador, Internet. Não tenha medo da tecnologia, mas também não lhe dê mais importância do que ela merece. Aprenda a gostar do teu trabalho e você se tornará um bom profissional, mas não se deixe seduzir pela perfeição. O cara perfeito é antes de tudo um chato. Tenha em mente que o tradutor é um operário das letras que vive entre dúvidas, urgências e incompreensões, porém ele nunca deve se esquecer que a razão de seu trabalho são as pessoas. Portanto, não deixe que seus conhecimentos e o sucesso o transformem numa pessoa arrogante. Ninguém sabe tudo e quando você tiver alguma dúvida, procure ajuda, não seja orgulhoso. Você se lembra de Sócrates? Tudo que sei é que nada sei.

Também sugiro que você aprenda a se colocar no lugar dos outros e a aceitar que as pessoas são diferentes. Isso te ajudará a descobrir que o tradutor tem que mergulhar nos textos que traduz da mesma forma que um ator encarna seus personagens. E acima de tudo, nunca se canse de buscar as palavras que se amam para se tornar um construtor de pontes e aproximar as pessoas umas das outras. Um grande abraço, John.”


Publicado no Jornal A Cidade de Ribeirão Preto/SP
Orlando Ribeiro