12/09/2006

Quadrinhos: sedução, inteligência e cumplicidade como instrumentos de transformação da realidade

Umberto Eco é um mestre. Suas idéias sobre o papel da imagem na comunicação possuem grande importância. Ele nos mostra que a imagem requer leitura atenta e crítica, pois ela pode conter mensagens subliminares, conotações negativas, ironias e contradições, que mesmo sendo imperceptíveis à primeira vista, sempre produzem efeitos. Dentro dessa perspectiva, os quadrinhos jamais deveriam ser encarados como “coisa de criança”.

Partindo desse ponto de vista, o autor de quadrinhos busca o interesse, o entusiasmo e até mesmo a cumplicidade do leitor para transmitir sua mensagem. Para atingir o seu objetivo, ele lança mão de vários recursos de expressão. Porém, a imagem é sua arma principal. É com ela que ele seduz o leitor.

Como um lavrador que semeia pacientemente e espera a hora certa da colheita, o autor prepara a mensagem que o público deverá decodificar, servindo-se dos signos e de suas relações com um código invisível, confiando que os leitores os conheçam e entendam. Esse código, que é universal, não encontra barreiras e é capaz de ser entendido em qualquer parte. Podemos dizer, sem receio algum, que ele é fruto da experiência humana sobre a terra ao longo dos séculos. Portanto, ele faz parte da “alma do mundo”.

Como Umberto Eco nos mostra em “Leitura de Steve Canyon”, esse código baseia-se na representação de valores e conceitos por meio dos signos. Essa representatividade é dinâmica e provoca reações nas pessoas, interferindo, sem dúvida, nos diversos planos das relações humanas: plano filosófico e conceitual, plano político e econômico, plano sentimental e amoroso, por exemplo.

Juntamente com a utilização dos signos, a perspicácia do autor de quadrinhos na exposição gradual de atributos físicos, emocionais, sociais e psicológicos das personagens, dá pistas ao leitor para que este as crie em sua mente. Como se pode notar, o leitor também deve usar seu talento e inteligência para interagir com o autor, construindo as “almas” das personagens com seu próprio esforço, tornando-se seu cúmplice na trama.

Trabalhando com esse código, o autor, mestre da comunicação, usa a indução, a dedução e abdução como instrumentos para construir o universo da história em quadrinhos. Como matéria-prima, ele emprega tipos de padrões, ícones, idéias, preconceitos, rótulos, estereótipos, por exemplo, que fazem parte desse código universal. Dessa forma, ele estabelece um diálogo rico de significados, que desafia o leitor a mergulhar nesse universo para examinar e confrontar os conceitos, valores e atitudes das personagens no contexto em que foram criadas. Ao levar a efeito esse confronto, o leitor é capaz de transpor a realidade representada pela história para o mundo real onde ele vive. Assim, ele tem a oportunidade de tirar suas conclusões e formar a sua opinião. E quem é capaz de produzir suas próprias opiniões, tem o poder de transformar sua realidade.


Ribeirão Preto, 02/12/2006

10/14/2006

A localização de websites

O aumento das vendas de microcomputadores e o crescimento diário do acesso à Internet estão transformando a grande rede no primeiro lugar onde as pessoas vão procurar informações, produtos e serviços. Também não é segredo que o idioma predominante na Internet é o Inglês. Contudo, no final de 2002, foi estimado que 32% dos internautas não usavam o Inglês como primeira língua. Desde então esse número vem aumentando e não há dúvidas de que a diversidade lingüística está se expandindo no ciberespaço. Conseqüentemente, as grandes empresas perceberam como é importante preparar-se para interagir com um mercado segmentado, multicultural e multilíngüe.

Dessa forma, o conceito de localização de produtos começou a ser aplicado, mesmo que timidamente, aos projetos de websites. Entretanto, localizar um site, usá-lo como um canal de comunicação e atender aos requisitos culturais do seu público alvo, não é uma tarefa simples. Isso exige o uso de alguns recursos essenciais: tecnologia da informação, gestão de projetos, conhecimentos lingüísticos e culturais. Se algum desses ingredientes for negligenciado, o fracasso será inevitável.

De fato, as questões culturais e lingüísticas são as mais delicadas e, ao mesmo tempo, as mais esquecidas. A cultura e o idioma influenciam tudo o que fazemos, dizemos, lemos, escutamos e pensamos. Nem mesmo a Internet consegue escapar de sua influência. Sob esse aspecto, um site, ao interagir com um grupo social, exerce o papel de um agente de mudanças que desperta emoções, fomenta interesses, propõe novas idéias e subverte costumes. Não é fácil lidar com isso sem conhecimento e inteligência. Por isso, a localização de websites apresenta-se como um instrumento poderoso, mas que exige projetos inteligentes, técnicos competentes e, acima de tudo, profissionais com sensibilidade para lidar com a diversidade cultural que explode na Internet.

A tradução é um dos diversos fatores críticos na localização de websites. Na verdade, o conteúdo encerra muitas armadilhas. Os textos estão cheios de expressões idiomáticas, provérbios e metáforas que não podem ser traduzidos literalmente sem distorcer seu sentido original. E os tradutores automáticos? Isso mesmo! Aqueles que a Internet oferece gratuitamente. Ah! Esses são piores do que a encomenda. Uma língua é muito mais do que uma coleção de palavras.

E as imagens? Elas podem conter mensagens subliminares, conotações negativas, ironias e contradições que são imperceptíveis à primeira vista. Por exemplo, no Brasil, um site com imagens de mulheres de biquínis curtíssimos e bebendo cerveja é considerado normal, porém, como ele seria recebido em um país Islâmico? Uma imagem diz mais do que mil palavras. Portanto, todo cuidado é pouco.

Essas considerações representam apenas a ponta do iceberg. Existem outros fatores que precisam ser bem examinados, como por exemplo, os símbolos e as cores. Diante do que foi exposto, é possível perceber que a capacidade tecnológica, por si só, não é suficiente para garantir o sucesso de um projeto web. A sensibilidade cultural e a competência lingüística deveriam receber mais atenção.

Orlando Ribeiro

4/21/2006

Você sabe o que é Localização de Software?

A LISA é uma organização internacional que se dedica à localização e padronização Industrial. Ela ainda não é muita conhecida no Brasil, mas o seu trabalho nos interessa bastante. Mas afinal de contas, o que é essa tal de localização? Pois bem, a localização é o processo que modifica e adapta produtos para ajustá-los às diferenças culturais, sociais e econômicas dos mercados onde as indústrias desejam introduzi-los. Segundo esse conceito, um software de gestão produzido no Brasil precisaria sofrer mudanças de idioma, projeto e processos, por exemplo, se o seu produtor quisesse comercializá-lo em outros países da América Latina.

A localização de produtos é uma área recente, pois a internacionalização das relações culturais, econômicas e políticas explodiu somente na década de 80 com a expansão da indústria das telecomunicações e da tecnologia da informação. Nessa época, satélites e computadores subverteram conceitos e arrancaram o mundo de sua órbita. Em meados dos anos 90, a internet acelerou esse processo e deu origem a um fenômeno social e cultural de grande impacto: a globalização. Não havia mais fronteiras, mercados ou regimes políticos isolados. Os consumidores podiam ser atingidos em qualquer local do globo em poucas horas. Contudo, surgiram algumas complicações: Como produzir, vender e entregar produtos que satisfizessem as necessidades e respeitassem as diferenças culturais, lingüísticas e étnicas de consumidores das mais variadas origens?

Certamente, a adaptação cultural e funcional de produtos é um fator de sucesso para as empresas que desejam competir no mercado mundial. Contudo, embora a localização possa ser aplicada em uma ampla variedade de indústrias, atualmente, ela está mais freqüentemente associada à produção de software e hardware. Portanto, não é difícil reconhecer a contribuição da localização para a expansão do mercado internacional da tecnologia da informação. Empresas como a Microsoft e IBM não teriam alcance mundial se não tivessem construído uma estrutura para localizar seus produtos para diferentes culturas. É certo que esse processo não é simples já que ele exige a muito estudo e trabalho de tradução da interface do usuário e manuais do produto para outra língua, ajustes de suas características técnicas, funcionais e culturais, adequação à legislação local e a execução dos testes que garantam o funcionamento do produto.

O Brasil possui vocação para produção de software e apresenta ótimas perspectivas de crescimento. Existem algumas empresas brasileiras que exportam software, a Softex e o MCT. Contudo, ainda estamos engatinhando e há grande necessidade de investimentos que viabilizem novos empreendimentos. A processo de localização é uma das atividades que podem estimular a exportação de software e, portanto, merece atenção de empresas, universidades e dos órgãos governamentais competentes. Se o Brasil quiser competir nesse mercado, precisará investir em localização de software.

Publicado no Jornal A Cidade de Ribeirão Preto em 13 de abril de 2006

3/14/2006

O construtor de pontes

Podemos comparar a arte de traduzir com a arte de caminhar sobre o fio de uma espada. Qualquer deslize pode ser fatal porque as palavras e os pensamentos são ingredientes preciosos, mas perigosos, que fazem parte de uma receita incapaz de agradar a todos os paladares: a comunicação.

A palavra tradução, que vem do termo latino traducere, significa verter, trasladar de uma língua para outra. Curiosamente, a palavra traição que vem do latim traditione e significa o ato ou efeito de trair, possui o mesmo radical (trad) e esse fato lança no ar uma questão perturbadora: “traduzir é trair?”.

Então, o que é preciso para ser um bom tradutor? Bem, creio que não existe uma receita infalível porque a tradução está longe de ser uma ciência exata. Talvez o primeiro passo seja aceitar que ninguém é perfeito e lembrar sempre que o único tradutor que não erra é aquele que não exerce seu ofício.

A propósito, lembro-me de um velho amigo que conheci nos tempos da faculdade. O pessoal o chamava de “Mané” por causa do sotaque aportuguesado que ele tinha. Filho de um português e de uma canadense, o “Mané” nasceu em Angola e se mudou para o Brasil aos 15 anos. Ele fala Inglês, português, francês, um dileto africano e aprendeu tupi-guarani durante o tempo que morou no Xingu. Quando eu o conheci ele estava com 35 anos e trabalhava com traduções há uns 10 anos. Ele viajou por toda a Europa, estudou no Canadá e vagabundeou pelos Estados Unidos viajando de carona. Um dia ele “desbundou” e voltou para o Brasil porque descobriu que gostava mesmo era de sol, praia, mulatas e cerveja bem gelada. Quando eu lhe contei que eu estou me preparando para ser tradutor, ele não falou nada. Alguns dias depois recebi o seguinte e-mail:

“Caro Lan, não é fácil ser um tradutor. Esteja preparado para estudar o resto de sua vida, mas não se torne um CDF reacionário. Busque o novo, use computador, Internet. Não tenha medo da tecnologia, mas também não lhe dê mais importância do que ela merece. Aprenda a gostar do teu trabalho e você se tornará um bom profissional, mas não se deixe seduzir pela perfeição. O cara perfeito é antes de tudo um chato. Tenha em mente que o tradutor é um operário das letras que vive entre dúvidas, urgências e incompreensões, porém ele nunca deve se esquecer que a razão de seu trabalho são as pessoas. Portanto, não deixe que seus conhecimentos e o sucesso o transformem numa pessoa arrogante. Ninguém sabe tudo e quando você tiver alguma dúvida, procure ajuda, não seja orgulhoso. Você se lembra de Sócrates? Tudo que sei é que nada sei.

Também sugiro que você aprenda a se colocar no lugar dos outros e a aceitar que as pessoas são diferentes. Isso te ajudará a descobrir que o tradutor tem que mergulhar nos textos que traduz da mesma forma que um ator encarna seus personagens. E acima de tudo, nunca se canse de buscar as palavras que se amam para se tornar um construtor de pontes e aproximar as pessoas umas das outras. Um grande abraço, John.”


Publicado no Jornal A Cidade de Ribeirão Preto/SP
Orlando Ribeiro

2/18/2006

A tecnologia e suas contradições

No famoso romance de Robert L. Stevenson, “O médico e o monstro”, o bom doutor Jekil transformava-se no cruel senhor Hyde; da mesma forma, a Internet também traz em si a semente do bem e do mal. Como um espião, ela atravessa clandestinamente os continentes, invade corações e mentes, derruba todas as fronteiras ideológicas, geográficas e culturais. Sem dúvida, vivemos em uma “aldeia global”. O Haiti é aqui. O “tsunami” amedrontou todos nós. Os temores provocados pelas bombas de Londres também atingiram o solo tupiniquim. “A grande rede” estende suas garras numa fração de segundos; transgride nossa privacidade e causa profundas mudanças no comportamento humano. O conflito é inevitável.

O muro de Berlim foi derrubado no final da década de 80, mas, infelizmente, o modelo de desenvolvimento tecnológico que praticamos está construindo silenciosamente uma nova muralha muito mais difícil de destruir. É visível a divisão do planeta em dois blocos que se afastam cada vez mais um do outro: Ricos e pobres ou incluídos e excluídos. As nações mais poderosas – e ricas – são aquelas que produzem tecnologia e conhecimento e estão “incluídas” na espaçonave que partirá para um futuro de sucesso. Enquanto isso, nos países mais pobres, as pessoas passam fome, morrem doentes, mal sabem ler e escrever. De que forma então podem produzir tecnologia e ciência? Vivem no limbo do progresso, “excluídos” deste admirável mundo novo e das oportunidades de um futuro melhor

Outro fato preocupante: embora estamos inseridos na sociedade da informação, a ignorância e a violência parecem não ter fim. Somos bombardeados diariamente por uma enxurrada de dados: e-mails, marketing virtual, “websites” e “newsletters”. É muito lixo virtual, cultural inútil, sofismas e ideologias de toda sorte que tentam confundir nosso pensamento para manipular nossa opinião. Quem não pensa não é dono de seu destino. E a Internet que surgiu para ser um elemento multiplicador do saber, acaba sendo usada como um instrumento de alcoviteiros e pescadores de águas turvas. O exercício da razão deveria ser moda permanente.

A Internet também é uma evidência de que não é mais possível controlar tudo. Sinal dos tempos? O mundo está girando tão rápido que quando criamos um sistema para controlar “algo”, este “algo” já mudou ou não existe mais. Onde nos levará essa anarquia virtual? Isso tudo é muito novo e inquietante para nós e creio que levaremos algum tempo para aprender a lidar com esses fenômenos. Talvez por isso vivamos tão ansiosos e estressados. Chegamos até a perder o ingênuo hábito de cantar e assobiar descontraidamente. Terá o “homo tecnologicus” empenhado sua humanidade em troca da volúpia do poder? Talvez devêssemos dar menos importância aos ídolos tecnológicos que criamos e lembrar que somos pessoas. De que vale esse modelo de progresso tecnológico se não somos felizes? Contradições da modernidade!

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